O vendaval anuncia que hoje o dia de trabalho vai acabar mais cedo. O pessoal volta do campo para se abrigar da chuvarada que não demora a cair. As terras da comunidade Yuba ficam em Mirandópolis, a 600 quilômetros da capital paulista.
Por lá vivem pouco mais de 70 agricultores de origem japonesa que, em 110 hectares, plantam milho, horta, abacaxi, goiaba, manga e romã, e ainda criam porco, galinha e gado. Mas o que faz a fama dos Yuba não é exatamente a produção.
O balé Yuba, que vamos conhecer melhor, é representado pelos próprios agricultores, e já esteve em várias cidades do Brasil e do exterior.
O líder aqui é seu Tetsuhiko Yuba, filho mais velho do fundador da comunidade, que faz questão de manter os mesmos princípios da época de seu pai, que morreu há 26 anos.
"A mentalidade é trabalho, reza e arte", diz seu Tesuhiko.
Era o ano de 1924 quando o patriarca Issamu Yuba pisou no Brasil. Ainda no Japão, sonhava com uma vida comunitária. No caminho para cá, convenceu parentes e amigos a aderir aos seus ideais.
"O sonho dele. Cada pessoa tem que viver a grande felicidade aqui no mundo, assim, no universo, aqui na Terra. Com comunidade todo mundo se ajuda. Sozinho não dá pra fazer nada. Na comunidade dá para gente viver feliz. Convivemos muito bem com outras pessoas. Parece difícil, mas, sabe, se conseguir essas coisas você pega a grande felicidade", diz a agricultora Renata Katsue, filha caçula de Issamu Yuba.
Renata Katsue é a filha caçula de Issamu Yuba. E, certo ou não, o sonho de seu pai está presente no dia-a-dia dessas famílias.
Para viver aqui é preciso concordar com um sistema diferente, no qual ninguém tem nada próprio. Tudo é de todos. Quando alguém precisa de dinheiro para algo particular tem que pedir para o líder da comunidade.
Entre os moradores daqui, o japonês é a língua oficial. Na biblioteca da comunidade, as crianças aprendem cedo os hábitos e os costumes da cultura oriental.
“Quando eu crescer as duas línguas vão ser importantes para mim porque eu nasci aqui, sou brasileira, mas minha raça é japonesa”, diz Patrícia Tsuji, de 10 anos.
Patrícia é filha de seu Yoshiki Tsuji, que aqui trabalha no cultivo do cogumelo shitake. Pagam por volta de R$16,00 o quilo do cogumelo e seu Yoshiki diz que é um bom preço.
Seu Tsuji nasceu no Japão e está na comunidade há 20 anos. Acredite, saiu de lá para dar volta ao mundo de bicicleta, que ainda conserva, embora já meio enferrujada.
Comprada em 1970, a bicicleta foi o veículo que o levou para diversos países, como mostram algumas fotos: ele no Afeganistão, no Irã, na Turquia, no Egito, na Guatemala e, claro, no Brasil, por onde entrou pelo Estado do Paraná, na fronteira com o Paraguai. Uma viagem que demorou pouco mais de quatro anos.
“Eu tinha cinco bagagens, e precisou trocar muito pneu na viagem a cada dois mil quilômetros trocava o pneu de trás”, conta Tsuji.
Seu Tsuji conheceu sua mulher Ivone na própria comunidade. Casou e teve quatro filhos. São os mais velhos, Maurício e Evely, que contam como é viver numa terra onde ninguém tem salário e o dinheiro é de todos.
“É bom porque você não pensa no dinheiro no dia-a-dia e é ruim quando você quer alguma coisa você tem que pedir para os mais velhos. Todos têm que economizar”, diz Maurício.
E economizar virou palavra de ordem, segundo dona Satiko Yuba, responsável por todas as contas da comunidade.
“Nos últimos anos nós temos passado algumas dificuldades. A minha preocupação é de quitar todas as dívidas. Pode levar muito tempo, também, mas eu vou quitar todas. Vou levar tempo, muito, muito, eu não sei quanto, mas eu vou quitar”, diz Satiko.
As principais dívidas vieram da cultura do abacaxi, que, por dois anos seguidos, sofreu muito com geada. Seu Sérgio Yuba responde pela comercialização de tudo que a comunidade produz e na hora do aperto é ele quem segura o "abacaxi".
“Todo mundo precisa pagar. No banco está o meu nome de quem, mas todo mundo paga igual. O prejuízo que o abacaxi fez ele tem que tirar ser recuperado com o próprio abacaxi. O tempo que isso vai levar depende do mercado, da oferta e da procura”, diz Sérgio.
Há 25 anos, seu Teruo Takayama ouviu falar da comunidade Yuba lá no Japão e resolveu vir para cá. Hoje, ele cuida da produção de verduras e legumes e o resultado do seu trabalho vai direto para as refeições, que também são comunitárias, já que nenhuma casa tem cozinha.
“Fazemos e gostamos dos dois tipos de comida: da brasileira e da japonesa. É uma mistura que combina’, diz a cozinheira Merina Yasaki.
O som do berrante avisa quem está no campo que a comida está pronta. Antes de servir, o silêncio para a oração, um dos pilares da filosofia Yuba. Muitos aqui são evangélicos, como era o fundador. Mas, na comunidade não há nenhum templo, nem religião oficial.
Os talheres ocidentais se misturam aos "hashis", os palitinhos que os mais antigos fazem questão de usar.
Depois do trabalho que cada um está destinado a fazer para servir a comunidade, é hora de colocar em prática o talento artístico que pode ser no refeitório mesmo.
Katsue ensaia todos os dias. Um pouco mais tarde, ela nos levou ao jardim das esculturas, com obras do artista plástico Hisao Ohara, já falecido, mas que também viveu por lá. São obras de granito, expostas a céu aberto.
“A filosofia de Issamu Yuba é aberta. Quem quer vir para cá pode vir, quem quer ir embora pode ir embora. É tudo aberto. Você tem que abrir o seu coração, senão, não entra nada para você. O jardim acaba representando um tudo isso. Porque a cada momento, cada obra, cada criação que ele sentiu aqui, ele fez uma coisa de emoção”, diz Katsue.
Dentro de casa, Katsue mostra pinturas de sua própria autoria.
“A pintura, para mim, significa o momento que eu vi, que eu senti. É a reportagem da minha vida”, conta Katsue.
O som da flauta vem da varanda da casa de Sueli Nozomi. No campo, ela é a encarregada da poda nos pés de goiaba, de onde sai a principal fonte de renda da comunidade. É por causa desse trabalho meticuloso que as goiabeiras dão frutos quase o ano todo.
“Acostumamos a fazer as duas coisas: trabalhar no campo e lidar com a arte. No meu caso, tocar flauta, mas eu gosto mais da flauta”, confessa, rindo, Sueli.
A vida de todos por lá é assim, com papéis no campo e também na arte. Desde cedo, as crianças aprendem a tocar instrumentos musicais na orquestra-mirim.
Além do palco, o barracão também abriga máquinas agrícolas. Trator e caminhão dividem o mesmo teto com o piano de calda, violinos e violoncelos. Não são poucos os ensaios nesse teatro rural. O palco, agora, é lugar para uma peça.
Dona Akiko Ohara era bailarina profissional, quando vivia no Japão. Ela chegou aqui no início dos anos atraída pelo ideal de realizar um trabalho de dança com os agricultores da comunidade.
Dona Akiko, que até hoje não fala português, conta que o trabalho no campo é uma fonte rica para dança. A lavoura, diz ela, é o nosso dia-a-dia e a matéria-prima para a nossa criação. O balé Yuba retrata a vida dos nossos agricultores.
Hoje é dia de ensaio geral no palco do barracão das máquinas agrícolas. Cada um preparou uma música, uma dança, e agora vai dar vida à imaginação artística. Com tudo pronto, a cortina se abre e os agricultores da comunidade Yuba iniciam o espetáculo.
Seu Tsuji no clarinete. Katsue no canto. A criançada na orquestra-mirim. O momento mais esperado é o balé, que hoje terá duas coreografias: ao som de música africana e segundo a tradição oriental.
Trabalho. Oração. Arte. O tripé que sustenta a relação desses agricultores é apenas um modo diferente de viver. Um jeito comunitário, no qual a aridez das dificuldades diárias convive com a manifestação artística no palco.
“Na vida é muito importante essa satisfação. Faz a grande felicidade para gente”, diz Sueli.
A reportagem na comunidade Yuba é uma homenagem do Globo Rural aos imigrantes japoneses e seus descendentes que comemoraram, essa semana, os 95 anos da Imigração Japonesa para o Brasil.